Que me perdoem os hipócritas, mas
o filme 50 tons de cinza é muito mais que sexo. O filme, por ele mesmo é ótimo, a trama interessante, mas 50 tons é um tapa na cara da
sociedade que prefere dizer que o filme é uma indecência diante de fatos muito
mais profundos e muito mais reais na vida do ser humano, as consequências do
abuso, sejam eles físicos, emocionais, sexuais.
Anastasia Steels não é uma ingênua, ela é
apenas uma moça virgem que se apaixona perdidamente por um homem. Mas daí eu
pergunto: Qual é o passado da Ana? Como
ela mesma diz: minha mãe está no quarto marido... Não sejamos tão superficiais
assim. No íntimo ela sabia que ele tinha problemas, e muito sérios. Ela é tão
desajustada quanto ele. É a famosa comunicação “não falada” que acontece entre
as pessoas quando se conhecem. Os espirais de comunicação dela se cruzaram com
os de Gray e no momento seguinte os dois se identificaram.
Ela não foi abusada sexualmente,
mas foi negligenciada, passou a vida inteira procurando atenções. O pai morreu,
o padrasto criou, a mãe foi embora com outro e agora vive com outro. Ela
buscava alguém que a cuidasse. Ela queria ser o centro das atenções. Ele foi
abusado fisicamente e emocionalmente quando criança. A mãe, uma drogada, não
lhe dava atenção. O padrasto, um traste que o queimou; o humilhou; que matou a
mãe na sua frente. Foram horas até que a polícia os encontrasse. Cresceu com a
necessidade de controle daquilo que ele nunca conseguiu dominar, sua vida. Todo
o relacionamento é uma via de mão dupla, mas este é assunto para outro artigo.
Você sabe quantas crianças são
abusadas diariamente neste país? Sabe onde e por quem elas são abusadas? Há 10
anos o Ministério da Saúde revelou que aproximadamente 200 mil crianças e
adolescentes declararam ter sofrido agressão física e destes, 80% foram
cometidos por pessoas da família ou próximas a elas. Em 2006, somente em
Curitiba, 3390 crianças foram vítimas da violência doméstica. Mais de nove agressões
por dia! A negligência vem em primeiro. Depois seguem as agressões física,
sexual, psicológica e por fim, o abandono. Se os números só crescem... quantas
crianças e adolescentes passam por isso hoje em dia?
E você aí dizendo que o filme é
uma pornografia sem fim ou que Cristian Gray não é um homem a ser esperado
pelas mulheres. Pare com isso. Sejamos mais decentes. Todo mundo sabe que sexo
é sexo e que o mocinho só vai fazer parte do sonho erótico das mulheres até que
outro galan mais sarado apareça na telinha. Gray não é o meu sonho de consumo,
apesar de gostar de homens com cabelo bem cortado, uma camisa bem passada, uma
gravata alinhada. Gosto mesmo do engomado. Mas ainda assim, prefiro o de carne
e osso, e estável emocionalmente.
Saí do cinema com o estômago
revirado. Senti a dor da Ana. Vi o horror e pavor nos olhos de Gray. Na
história, ele é curado pelo amor dela (Isso não está no filme). E daí eu
pergunto novamente: quantas das nossas crianças não estão desta mesma maneira,
passando por agressões sem que as pessoas ao redor entendam seus silenciosos
pedidos de socorro?
Pelo amor de Deus. A violência
acontece em casa: pelo pai, tio, padrasto, vizinho, pai do amigo. Pela mãe,
pela avó, pela tia, pela irmã. A
violência está nas igrejas. SIM, NAS IGREJAS: são padres, pastores, gurus,
discipuladores, conselheiros, amigos. A violência está nas escolas:
professores, diretores, orientadores .... e etc.
Até quando vamos fechar os olhos
para o que acontece debaixo do nosso nariz? Volto a dizer, é muito fácil falar
que o filme é indecente, quando de fato o que ficou claro foi a consequência do
desajuste na vida de alguém.
As Redes de Proteção estão em
todas as cidades, mas a comunidade faz vista grossa. As igrejas não tratam do
tema abertamente, as escolas só dizem que as crianças precisam denunciar, mas
não dão condições reais para que as denúncias ocorram. É mais fácil condenar o “comportamento
libidinoso” da criança e do adolescente ao invés de saber de fato o porquê dela
agir desta maneira.
Precisamos falar mais, criar espaços para o
debate sadio. Precisamos tirar nossas máscaras. Precisamos olhar para o mundo
como ele é, pois somente assim pessoas poderão ser resgatadas, tratadas, curadas.